Tiago teve uma semana bem corrida; provas, trabalhos e Robert ficou doente por quatro dias, e a maioria das noites Tiago passava no hospital acompanhando o amigo. E por isso ele não teve muito tempo de pensar no Submundo e no estranho Rei. Apenas decidiu que não pisaria mais lá. Não era seu mundo. Ele não gostava daquele tipo de coisa, uma das razões que o fez não entrar para nenhuma fraternidade da faculdade.
Foi em um domingo ensolarado que Tiago decidiu sentar no parapeito da janela e ler um livro que havia comprado em uma livraria próxima ao hospital. Antes ficou vislumbrando as folhas rosas da cerejeira, brilharem com o sol.
— Não sabia que ela se mantinha rosa o ano todo- Robert se aproximou apenas de calça moletom e os cabelos bagunçados. Havia acabado de acordar— Bom dia— Deu um beijo na testa de Tiago.
— Bom dia. Você está melhor?
— Graças a você— Robert assentiu abraçando o amigo pela cintura— Você cuidou muito bem de mim— Deu outro beijo na testa— Valeu. Então, planos para hoje?
Tiago piscou. Havia saído um pouco do ar. Certo que Robert era seu amigo, mas ser abraçado por um cara tão forte e firme como ele havia deixado Tiago desconcertado.
— Não. E você?
— Submundo. Festinha antes da Colheita— Piscou.
Tiago revirou os olhos. A colheita aconteceria na segunda, quando não houvesse aula.
— O Rei vai passar algumas instruções.
— Olha só, queria te perguntar algo... Quem é o Rei?
— Bom, ele é aluno de Medicina, mas ninguém sabe o nome verdadeiro dele. Todo mundo, até mesmo os professores, chamam ele de Rei. Talvez seja o nome dele mesmo. Coisa de pais excêntricos. Mas enfim, você vem comigo né?
— Nem pensar. Dá última vez eu fiquei sentado em um banco a noite toda e ainda carreguei você bêbado para cá. Olhe o seu tamanho e o meu.
Robert riu alto.
— Não vai ter bebidas. Temos de ficar sóbrios para amanhã. Por favor, venha comigo. E você precisa saber as regras, porque estará lá comigo.
— Eu já disse que não vou participar disso.
— Nem a pau— Robert se afastou. Haviam conversado sobre isso a semana inteira e sempre acabavam discutindo— Eu já disse e repito; você não vai ficar aqui sozinho.
— Eu tranco a porta— Tiago bufou.
— Isso não impediria eles. Tiago, você vai vir comigo ou eu não vou.
Tiago levantou-se indignado.
— Pra quê?! Para depois seus amiguinhos estarem pondo a culpa em mim?
— Eles não falam de você— Robert tentou manter a calma na voz.
— Eu sei que falam! Me odeiam. Todos me odeiam aqui!
Para a surpresa de Tiago, Robert o abraçou com força.
— Eu não te odeio— Disse o ruivo em seu ouvido- Eu tenho você como meu irmão. E é por isso que não posso te deixar sozinho- Com uma mão, pois a outra ainda prendia Tiago ao seu corpo, Robert ajeitou a franja de Tiago— Se eles falassem mal de você acha mesmo que eu seria amigo deles? Não, eu quebraria a cara deles.
Tiago sorriu, a raiva indo embora como vapor. Robert sempre conseguia contornar a briga deles.
— Quer que eu fique com você aqui amanhã?
— Não, eu... Eu vou com você.
Apesar de o dia ter sido quente, a noite foi fria e escura, a lua não apareceu e uma névoa prateada rastejou pelos terrenos da Feichun. As portas duplas do Submundo já estavam abertas quando Tiago chegou com Robert. O garoto nerd ficou muito desconfortável de rever o salão novamente. O Rei já estava em seu trono, a cobra gigante rastejando pelos seus ombros e fitando a multidão com superioridade.
— O Festival da Colheita começa amanhã— O Rei disse assim que todos se calaram— E devemos estar prontos. Não preciso nem lembrar que isso é de extrema importância para mim, pois este Festival vem passando pela minha família a séculos. Cacem as bruxas!
Uma chuva de aplausos caiu pelo salão. A festa que se seguiu foi divertida, segundo Tiago, pois não teve bebida alcoólica e ele dançou com Robert por horas sem parar. Cansado e ofegante ele se afastou para beber algo em uma comprida mesa cheia de aperitivos e bebidas comuns.
— Oi, tudo bem?— Tiago olhou para trás. Uma garota morena de cabelos negros estava encostada na mesa— Vai participar do festival?
— Vou sim. E você?
Ela deu uma risada gelada que fez a coluna de Tiago gelar.
— Não. Eu não preciso disso. Mas você... O Rei...
— O Rei está bem aqui- Tiago arregalou os olhos e virou-se lentamente. O Rei estava atrás dele. Usava somente uma calça jeans, deixando o corpo definido e sarado à mostra— Deseja falar algo sobre mim, Simetrite?
A garota ficou séria e pálida e balançou a cabeça.
— Ótimo. Porque não sai daqui?
A garota se afastou se excitar. Tiago estremeceu. Não sabia como agir diante do Rei.
— Ela é uma cobra. Não dê ouvidos a ela. Mas por acaso, ouvi o que disse. Vai mesmo participar da Colheita?
Tiago assentiu sentindo o coração acelerar enquanto o Rei se aproximava mais dele.
— Você não pode fazer isso. Não entre na floresta— Havia urgência na voz dele e Tiago viu que a cena estava arrancando olhares pelo salão.
— Por que?
O Rei se inclinou até seu ouvido. Tiago sentiu os alarmes do seu corpo mandarem ele se afastar, mas parecia um boneco de tão imóvel.
— Você não é como eles. Você não pertence a esse lugar.
Tiago sentiu o medo ir embora e a raiva crescer dentro dele como um animal feroz. Estava cansado daquilo.
— Sim, eu sei bem disso. Obrigado por lembrar. Mas isso não me impede de me divertir com meu amigo. E você não é dono da floresta.
O efeito de suas palavras foi geral. O Rei estava imóvel no lugar e tão pálido quanto antes. As pessoas que fingiam não ouvir a conversa estavam fitando Tiago com espanto.
— Eu não estou mentindo— O Rei falou com firmeza enquanto a música era silenciada e todos paravam de fingir e olhavam descaradamente para eles dois— Você não é como a gente. Você não devia estar aqui.
Tiago sentiu a mente nebulosa e levantou a mão e deu um tapa no Rei, e antes que pudesse ver a reação dos outros, saiu correndo, as lágrimas deixando sua visão turva.
Correu o mais longe que podia, não queria ficar perto do Submundo ou de qualquer lugar aonde o Rei estivesse. Correu e correu até chegar no barracão de barcos, a margem do lago. Abriu a porta velha e encarou os barcos banhados pela luz do luar que entrava por algumas janelas. E as luzes acenderam. Um garoto de cabelos prateados e espetados estava sentado em um barco emborcado, os olhos levantaram para Tiago e ele deu um meio sorriso.
— Noite difícil? Melhor sentar— Tiago sentou em um balde de madeira emborcado— Sou Alexandre.
— Tiago.
— Então, o que aconteceu com você?— Tiago abriu a boca para falar mas logo a fechou, não sabia se podia confiar naquele garoto. Rei tinha muitos aliados por aí.
— É o Rei, não é?— Tiago arregalou os olhos— Rei consegue tirar a felicidade de tudo a sua volta, eu entendo disso.
— Ele é tão... Idiota.
— Ele é bem pior que isso. O que ele te fez?
— Disse que não posso participar da colheita, que não pertenço a esse lugar.
— É bem a cara dele. Mas sério, não vale a pena participar da colheita, é brutalidade demais.
— Bem, Robert não quer me deixar sozinho no dormitório.
— Para a sua sorte eu sei tudo sobre a colheita e posso nos proteger. Juro que não sou mal e preciso de companhia nesse dia entediante.
— Eu— Tiago olhou bem para o garoto, ele parecia de confiança— Eu aceito.
— Ótimo. Então me diga qual seu dormitório e estarei lá bem cedo.
— Que garoto é esse?— Robert indagou enquanto vestia uma jaqueta.
Tiago observou o jardim lá embaixo, estava enevoado, o céu estava escuro e pesado. No ar havia uma pesada sensação de medo e diversão sanguinária.
— Conheci ele ontem logo depois daquela cena no Submundo.
Robert segurou sua mão e o puxou para seus braços. Tiago descansou a cabeça no peito do amigo.
— Eu sinto muito por ontem. Até briguei com Rei. Não vou mais pisar naquele lugar. Você é mais importante para mim— Tiago sorriu e beijou o pescoço do amigo— Mas essa história de você ficar sozinho aqui com esse cara...
— Ele não vai me deflorar, prometo— Tiago disse rindo.
— Ah, não cara. Desse jeito eu não vou.
— Vai sim. Vai caçar bruxas para nós— Tiago brincou enquanto passava as mãos pelos cabelos ruivos de Robert— Estarei esperando você bem aqui. Intocado, prometo. Ele em momento algum deu em cima de mim.
— Tudo bem. Mas só vou sair quando ver ele. E outra coisa... Troca essa roupa, nem a pau que vou deixar ele te ver assim.
— Qual o problema?— Tiago olhou para si mesmo. Usava uma camiseta e um short branco de dormir— Você me ver todo dia assim.
— Isso mesmo. Por isso eu sei o que pode se passar na cabeça desse cara. Não mesmo. Vista uma calça jeans ou algo assim. Cubra as pernas.
— Minhas pernas são feias?— Tiago indagou incerto enquanto se abaixava para procurar uma calça de moletom na cômoda. Ele não notou que seu short havia levantado, mostrando muita parte da bunda. Robert engoliu em seco.
— Suas pernas são lin... Quero dizer, são pernas legais...— Robert pigarreou— Por isso não quero que ele as veja.
Tiago encontrou a calça preta e levantou-se e foi para o banheiro se trocar. Penteou os cabelos e passou um pouco de perfume. Não queria que Alexandre o visse desgrenhado. Quando saiu Alexandre já estava lá, usando jeans e um blusão branco, ele trazia uma bolsa de lona que estava no chão. Robert o olhava com desprezo.
— Alexandre, você veio.
Alexandre sorriu e o puxou para um abraço, que durou pouco, porque Robert os separou.
— Não precisa de abraços para dar bom dia- Gruiu ameaçador— Nada de abraços entre vocês. Tiago, vamos se falar lá fora.
Eles saíram para o corredor. Os últimos alunos saiam correndo para a colheita e o corredor parecia cena de filme de terro; longo, silencioso e mal iluminado. Robert o abraçou com força.
— Muito cuidado, entendeu? Qualquer coisa me ligue que estarei aqui em segundos. E nada de abraços com ele.
Tiago riu e beijou a bochecha do amigo.
— Pode deixar meu herói. E tome cuidado lá na colheita, tudo bem? Lembre-se que tem alguém aqui esperando, preocupado, então não se meta em encrencas.
Robert assentiu e beijou sua testa antes de abraçá-lo novamente.
— Te vejo em breve.
E se afastou. Tiago não queria dizer nada, mas estava com o coração na mão. Muito preocupado. E se Robert se ferisse?
Olhou de novo para o corredor e sentiu um calafrio e entrou, trancou a porta firmemente e passou o ferrolho. Virando-se deparou-se com Alexandre com a bolsa aberta na cama tirando coisas de dentro; comida, lanternas, cordas e até facas e arco e flecha.
— Bom, eu não sei muito sobre essa colheita, mas não vai ser só na floresta?— Tiago indagou se aproximando do arsenal- Isso e é spray de pimenta?
— Tiago, isso é o que a faculdade diz, mas existe algo por trás do Festival da Colheita. E seu amigo sabe disso.
— Do que está falando?
— O Festival da Colheita foi modificado alguns anos quando a faculdade estava com excesso de bolsistas. Primeiro foram acidentes estranhos; alunos caindo em buracos, pulando dos telhados e das árvores e caindo de escadas. Logo foi descoberto que todos esses alunos eram bolsistas, e que a faculdade deixava alunos riquinhos provocarem esses acidentes para eliminarem bolsistas e abrir vagas para os ricos.
— Espera aí... Isso é... Mas porque oferecer vagas se eles não querem bolsistas?
— Porque são obrigados a oferecer as vagas, se não perdem benefícios e tal. Alguns vão para a floresta sim. Mas os Gladiadores não.
— Gladiadores?
— Fraternidade Gladiadores, eles ficam vagando pela faculdade em busca de bolsistas. Eu sou bolsista, e meu irmão foi bolsista aqui. Jogaram ele do alto da torre da biblioteca, ele está tetraplégico hoje— Tiago vou os olhos do garoto brilharem e o abraçou.
— Ei, tudo bem. Vamos ficar bem, isso vai acabar logo.
Mas o medo dentro dele só havia aumentado. Mas não amedrontava Alexandre. Tiago foi até a janela e olhou para baixo. Um grupo de seis alunos vinham entrando no prédio pelo jardim. Eles usavam máscaras douradas com feições duras e brutais. Um deles ergueu a cabeça e Tiago se escondeu.
— O Festival da Colheita começou!- Gritou um deles— E quem estiver se escondendo aí dentro vai ser punido igual às bruxas!
E se seguiu uma chuva de vivas e uivos de concordância. E eles entraram no prédio dos dormitórios.
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